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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

O CONTRATO SOCIAL - PRINCÍPIOS DO DIREITO POLÍTICO - ROUSSEAU


O CONTRATO SOCIAL – PRINCIPIOS DO DIREITO POLÍTICO – Jean Jacques Rousseau

O subtítulo é muito mais significativo e expressivo.

O ser humano nasce livre e em toda parte está a ferros.
Se um povo é constrangido a obedecer e obedece, faz bem.
A ordem social é um direito sagrado que serve de base para todos os demais. Esse direito está fundado em convenções.
A mais antiga de todas as sociedades e a única que é natural é a família.

O mais forte jamais é bastante forte para ser sempre o senhor se não transformar sua força em direito e a obediência em dever. Assim é constituído o direito do mais forte.

A força é um poder físico; não vejo de modo algum, que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade; é no máximo, um ato de prudência.
Visto que se é a força que produz o direito, o efeito muda com a causa; toda força que sobrepuje a primeira, a sucederá nesse direito.
Visto que nenhum homem tem qualquer autoridade natural sobre seu semelhante e visto que a força não produz direito algum, restam, então, as convenções como base para toda a autoridade legítima entre os seres humano.

Ora, um homem que se faz escravo de outro não se dá: ele se vende – ao menos por sua subsistência.

A guerra é uma relação entre Estados na qual os indivíduos particulares são inimigos apenas acidentalmente.
Entre coisas de natureza diversa não se pode estabelecer qualquer relação verdadeira.
O estrangeiro, que rouba, mata ou detém os súditos sem declarar a guerra ao príncipe, não é um inimigo – é um bandido.

Sendo a finalidade da guerra a destruição do Estado inimigo, tem-se o direito de matar seus defensores contanto que empunhem armas, mas no momento em que eles as depõem e se rendem, cessando de ser inimigos ou instrumentos do inimigo, eles voltam a ser simplesmente homens e não se tem mais direito sobre sua vida.

Assim, em qualquer sentido que encaremos as coisas, o direito de escravidão é nulo, não apenas porque é ilegítimo, mas também porque é absurdo e carece de significado. Estas palavras, escravidão e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente.

Antes de examinar o ato mediante o qual um povo elege um rei, seria bom examinar o ato mediante o qual um povo é um povo, pois sendo este ato necessariamente anterior ao outro, constitui um verdadeiro fundamento da sociedade.
De ato, se não houve uma convenção anterior, a menos que a eleição se revelasse unânime, onde estaria a obrigação dos menos numerosos se submeterem à escolha dos mais numerosos?

Ora, como seres humanos não podem engendrar novas formas, mas somente combinar e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio para se conservarem senão formar, mediante agregação, uma soma de forças que possa vencer a resistência, impulsionando-as para um só móvel e fazendo-as atuar em conjunto.
Como envolvê-los sem se prejudicar e sem negligenciar os cuidados que ele deve a si mesmo?
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um se unindo a todos obedeça, todavia, apenas a si mesmo e permaneça tão livre como antes. Eis o problema fundamental para o qual o contrato social oferece a solução.

Sendo o pacto social violado, cada um retornaria aos seus primeiros direitos e retomaria sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara a favor daquela.

Bem compreendidas, essas cláusulas se reduzem todas a uma só, a saber: a alienação total de cada associado com todos seus direitos a toda comunidade, pois primeiramente, cada um se dando por inteiro.
Ademais, a alienação sendo realizada sem reservas, a união é a mais próxima possível da perfeição e nenhum associado terá mais nada a reclamar;
Cada um sendo, de certa maneira, seu próprio juiz, pretenderia de imediato sê-lo de todos, o estado de natureza subsistiria e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou vã.

Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção da vontade geral;
Esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo.
Essa pessoa pública assim formada pela união de todas as outras era designada outrora pelo nome de cidade (sentido verdadeiro).
O ato de associação encerra um compromisso recíproco do público com os particulares.
Mas não se pode aplicar aqui a máxima do direito civil de que ninguém está obrigado aos compromissos assumidos consigo mesmo, visto haver grande diferença entre se obrigar em relação a si mesmo ou em relação a um todo de que se faz parte.
Logo que essa multidão é reunida num corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo;
Cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão.

Essa passagem do estado de natureza ao estado civil produz no homem uma mudança muito acentuada, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e outorgando às suas ações a moralidade que lhe faltava antes.
O homem, o qual até então olhara apenas para si mesmo, se vê forçado a agir com base em outros princípios e a consultar sua razão antes de escutar suas inclinações. Embora se prive de várias vantagens que frui da natureza, granjeia outras de igual importância; ...deveria bendizer o instante que dela o arrancou para sempre e de que, de um animal estúpido e limitado, fez um ser inteligente e um homem.

Reduzamos a termos fáceis de comparação. O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e que pode atingir; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade detudo o que possui.
O direito do primeiro ocupante, se bem que mais real que o do mais forte, só se torna um direito verdadeiro após o estabelecimento do direito de propriedade. Todo homm tem naturalmente direito a tudo aquilo que lhe é necessário, mas o ato positivo que o torna proprietário de qualquer bem o exclui de todo o resto. Definida sua parte, ele a ela deve se limitar e não tem mais nenhum direito ao que é comum.
Será suficiente por um pé sobre um terreno comum para tão logo se pretender seu dono?
Como pode um homem ou um povo apoderar-se de um território imenso e dele privar todo o gênero humano senão por uma usurpação condenável, já que tira do resto dos homens o abrigo e os alimentos que a natureza lhes dá em comum?
Pode ocorrer também que os homens principiem a se unir antes de possuir algo e que, apoderando-se em seguida de um terreno suficiente para todos, usufruam dele em comum, ou que o dividam entre si...

Em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a desigualdade física que a natureza poderia ter colocado entre os homens e que, podendo ser desiguais em força e gênio, se tornam iguais pela convenção e pelo direito.

Pois se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o tornou possível.
Se não houvesse qualquer ponto em que todos os interesses concordassem, não poderia existir nenhuma sociedade. Ora, é unicamente baseado nesse interesse comum que a sociedade deve ser governada.

Sendo a soberania o exercício da vontade geral e o Soberano um ser coletivo, que só pode ser representado por ele mesmo; pode-se muito bem transmitir o poder, mas não a vontade.

Se não é impossível que uma vontade particular se harmonize em algum ponto com a vontade geral, é impossível, ao menos, que esse acordo seja durável e constante, visto que a vontade particular se inclina, por sua natureza, para as preferências, e a vontade geral para a igualdade.

Pois a vontade é geral ou ela não o é; ou é aquela do corpo do povo, ou somente de uma parte. No primeiro caso essa vontade declarada e um ato de soberania e produz lei. No segundo não passa de uma vontade particular ou um ato de magistratura; no máximo, é um decreto.
Conclui-se que a vontade geral é sempre correta e tende sempre à utilidade pública, mas não se conclui que as deliberações do povo gozem sempre da mesma correção. Deseja-se sempre o seu próprio bem, mas não é sempre que se percebe onde ele se acha.

Há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta só considera o interesse comum, aquela considera o interesse privado e não passa de uma soma de vontades particulares.

Quando o povo suficientemente informado delibera, a vontade geral resultaria sempre do grande número de pequenas diferenças e a deliberação seria sempre boa. Mas quando ocorrem intrigas, associações parciais às expensas da grande, a vontade de cada uma dessas associações se torna geral relativamente a seus membros e particular em relação ao Estado;
Importa, portanto, para que se alcance o devido enunciado da vontade geral que não haja sociedade parcial dentro do Estado e que cada cidadão opine apenas de acordo consigo memo.

Se o Estado ou a Cidade é tão só uma pessoa moral cuja vida consiste na união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria conservação, faz-lhe necessária uma força universal e compulsória para mover e dispor cada parte da maneira mais conveniente ao todo.

Todos os serviços que um cidadão pode prestar ao Estado, ele os deve tão logo o Soberano os solicite; mas o Soberano, por seu lado, não pode sobrecarregar os súditos com um peso inútil à comunidade; não pode sequer desejá-lo pois sob a lei da razão nada se produz sem causa, tampouco sob a lei da natureza.
Os compromissos que nos ligam ao corpo social só são obrigatórios na medida em que são mútuos.
... deve partir de todos para se aplicar a todos e perde sua retidão natural quando tende para algum objeto individual e determinado;
Seria ridículo querer então se reportar a uma decisão expressa da vontade geral que só poderia ser a conclusão de uma das partes (uma vontade estranha, particular).

Quem deseja conservar sua vida às expensas dos outros deve também doar a eles a vida quando necessário.
Pelo pacto social demos existência e vida ao corpo político: trata-se agora de lhe dar movimento e vontade mediante a legislação, já que o ato primitivo pelo meio do qual esse corpo se forma e se une, nada determina quanto àquilo que ele deverá realizar para se conservar.

O que está bem e em conformidade com a ordem assim é devido à natureza das coisas e independentemente das convenções humanas.

Há, indubitavelmente, uma justiça universal emanada exclusivamente da razão, mas essa justiça, para ser admitida entre nós, deve ser recíproca.

No estado de natureza, no qual tudo é comum, nada devo àqueles a quem nada prometi; apenas reconheço como pertencente a outrem aquilo que é inútil para mim. Não é assim no estado civil, no qual todos os direitos são fixados pela lei.
Forma-se entre o todo e sua parte uma relação que deles faz dois seres separados, na qual a parte é um e o todo menos essa mesma parte é o outro.

Assim, a lei poderá muito bem estatuir que haverá privilégios, porém não poderá conferi-los nominalmente a ninguém;... não poderá nomear tais e tais indivíduos.
O povo submetido às leis deverá ser seu autor.

Como uma multidão cega que com frequência não sabe o que quer, pois raramente está ciente do que é bom para si, executaria ela própria um empreendimento tão grande, tão difícil como um sistema legislativo? O povo, de sua parte, nem sempre tem dele percepção. A vontade geral é sempre correta, porém o julgamento que a guia não é sempre esclarecido.

Para descobrir as melhores regras de sociedade que convém às nações seria necessária uma inteligência superior, que visse todas as paixões humanas e não experimentasse nenhuma delas.
Seriam necessários deuses para dar leis aos homens.
Quando Licurgo deu leis à sua pátria, começou por abdicar à realeza. Era costume da maioria das cidades gregas confiar a estrangeiros o estabelecimento de suas leis.
Os próprios decênviros (Cada um dos dez magistrados da antiga Roma, encarregados de codificar as leis) jamais se arvoraram o direito de azer passar alguma lei contando apenas com sua autoridade. Nada do que propomos, diziam eles ao povo, pode se converter em lei sem o vosso consentimento. Romanos, sede vós mesmos os autores das leis que devem fazer vossa felicidade.

Os sábio que desejassem se dirigir ao vulgo com a linguagem deles em lugar daquela do vulgo não seriam compreendidos. Ora, há mil espécies de ideias impossíveis de serem traduzidas para a língua do povo.

Cada indivíduo, apreciando tão só o plano de governo que se relaciona com seu interesse particular, dificilmente percebe as vantagens que deve extrair das privações continuas impostas pelas boas leis.

Não podendo o legislador empregar nem a força nem o raciocínio, impõe-se como necessidade que ele recorra a uma autoridade de outra ordem, a qual possa induzir sem violência e persuadir sem convencer.

...Em todas as épocas os pais das nações foram constrangidos a recorrer à intervenção do céu e honrar os deuses..., a fim de que os povos obedecessem livremente e suportassem docilmente o jugo da felicidade pública.
Não cabe a qualquer homem fazer falar os deuses ou se fazer acreditar quando anuncia ser deles o intérprete.
Não é necessário que política e religião tenham entre nós um objeto comum, mas na origem das nações uma serve de instrumento à outra.

O sábio legislador não principia redigindo boas leis em si mesmas, mas investiga antes se o povo ao qual as destina está apto a assimilá-las.

Os povos, bem como os homens, apenas são dóceis enquanto são jovens, tornando-se incorrigíveis ao envelhecerem;

O povo não consegue  sequer suportar que se ataque seus males para destruí-los, semelhante a esses enfermos estúpidos e sem coragem que tremem ante a aproximação do médico.
Há para as nações como para os homens um tempo de maturidade que é preciso aguardar antes de submetê-los às leis;
...impediu seus súditos de jamais se tornarem o que poderiam ser ao persuadi-los de que não eram o que não são. É assim que um preceptor francês forma seu discípulo para que brilhe por um momento em sua infância e depois jamais ser coisa alguma.

Um estado deve... ter limites para a extensão que pode ter, a fim de que não seja nem excessivamente grande para ser bem governado, nem excessivamente pequeno para ser autossuficiente.
Distância – um peso se torna mais pesado à extremidade de uma alavanca mais longa.
São os homens que fazem o Estado e é a terra que alimenta os homens, sendo, então, a relação ser a terra suficiente à manutenção de seus habitantes e haver tantos habitantes quanto a terra possa nutrir.

Desconheço a arte de ser claro para quem não deseja estar atento.

Toda ação livre possui duas causas: uma moral, a saber, a vontade que determina o ato e a outra física, a saber, o poder que a executa. Quando um caminho rumo a um objeto, é preciso, primeiramente, que eu queira ir até ele e, em segundo lugar, que meus pés me levem até ele.

O que é, então, o governo?  Um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o Soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade tanto civil quanto política. Os membros desse corpo são denominados magistrados ou reis, isto é, governantes e o corpo inteiro leva o nome de príncipe.

Ora, quanto menos as vontades particulares se relacionam com a vontade geral, isto é, os costumes às leis, mais deve aumentar a força de repressão, do que se segue que o governo, para ser bom, deve ser relativamente mais forte à medida que o povo é mais numeroso.
Dentro de uma legislação perfeita, a vontade particular ou individual deve ser nula, a vontade do corpo própria ao governo, muito subordinada e, consequentemente, a vontade geral ou soberana sempre dominante e a regra única de todas as outras.

O Soberano pode, em primeiro lugar, confiar o governo a todo povo ou à maior parte do povo, de maneira que haja mais cidadãos-magistrados que simples cidadãos particulares. DEMOCRACIA

Pode confinar o governo entre as mãos de um pequeno número. ARISTOCRACIA

Pode concentrar todo o governo nas mãos e um único magistrado. MONARQUIA

Não é bom que aquele que produz as leis as ponha em exceção, nem que o corpo do povo desvie sua atenção dos pontos de vista gerais para fixa-la em objetivos particulares.
O crédito do Estado é bem mais consolidado no estrangeiro mediante senadores veneráveis do que por uma multidão desconhecida ou desprezada.

Maquiavel simulando dar lições aos reis, ele as deu, grandes, aos povos. O Príncipe é o livro dos republicanos.
Quanto mais a administração pública é numerosa, mais a relação do Príncipe com os súditos diminui e se aproxima da igualdade, de sorte que essa relação ou é uma, ou é a própria igualdade da democracia.

É mais fácil conquistar do que reger.

Em todos os governos do mundo a pessoa pública consome e nada produz. De onde lhe vem, então, a substância consumida? Do labor de seus membros. É o supérfluo dos particulares que produz o necessário do público. Do que se conclui que o estado civil só pode subsistir na medida e que o trabalho dos homens renda além de suas necessidades.
Qualquer pouco dado pelo povo que não lhes volta às mãos de modo algum, dando o povo sempre, o levará ao esgotamento;

Naqueles em que o único fito de se vestir é o adorno busca-se mais brilho do que utilidade.

Se quisermos formar uma instituição duradoura, não sonhemos, em absoluto, portanto em torná-la eterna.
O corpo político, assim como o corpo humano, já começa a morrer ao nascer e traz em si mesmo as causas de sua destruição.

O princípio da vida política reside na autoridade soberana. O poder legislativo é o coração do Estado, o poder executivo, seu cérebro, o qual transmite movimento a todas as partes.
Longe de enfraquecerem as leis adquirem incessantemente uma força nova em todo Estado bem constituído;
Em todos os lugares em que as leis enfraquecem ao envelhecerem, isso prova que não há mais poder legislativo e que o Estado não vive mais.

Quanto mais bem constituído for o Estado, mais os negócios públicos sobrepujarão os privados no espírito dos cidadãos.
Numa cidade (polis) bem conduzida todos correm às assembleias; sob um mal governo ninguém deseja dar um passo para dirigir-se a elas porque ninguém se interessa pelo que nelas acontece, prevendo-se que lá a vontade gral não prevalecerá e, porque, enfim, os afazeres domésticos tudo absorvem.
No momento em que alguém disser dos assuntos do Estado Que me importa? pode-se  ter como certo que o Estado está perdido.

Sendo todos os cidadãos iguais através do contrato social, o que todos devem fazer, todos o podem prescrever, enquanto ninguém tem o direito de exigir que outrem faça aquilo que ele mesmo não faz.

As assembleias periódicas são apropriadas principalmente quando não necessitam convocação formal, pois nesse caso o Príncipe não poderia impedi-las sem se declarar abertamente transgressor das leis e inimigo do Estado.
A paz, a união, a igualdade são inimigas das sutilezas políticas. Os homens corretos e simples são difíceis de ludibriar devido à sua simplicidade, não os impressionando as astúcias, os pretextos refinados; não são sequer suficientemente perspicazes para serem tolos.

Quanto mais reinar o consenso nas assembleias, isto é, isto é, quanto mais se aproximarem os pareceres da unanimidade, mais a vontade geral será dominante. Entretanto, os longos debates, as dissenções, o tumulto anunciam a ascendência dos interesses particulares e o declínio do Estado.

A diferença de um único voto rompe a igualdade, um único voto opositor rompe a unanimidade. Mas entre a unanimidade e a igualdade há diversas parcelas desiguais, podendo-se para cada uma delas fixar esse número de acordo com estado e as necessidades do corpo politico.

Que me indaguem: porque no paganismo, no qual cada Estado possuía seu culto e seus deuses, não havia absolutamente guerras religiosas? Respondo que era por isso mesmo, ou seja, cada Estado tendo seu culto próprio tanto quanto seu governo, não distinguia seus deuses de suas leis. A guerra política era também teológica. A jurisdição dos deuses era, por assim dizer, fixada pelos limites das nações. O deus de um povo não detinha qualquer direito sobre os outros povos. Os deuses dos pagãos não eram deuses ciumentos; repartiam entre si o império do mundo.
Mas quando os judeus, submetidos ao rei da Babilônia e em seguida aos reis da Síria, quiseram se obstinar a não reconhecer nenhum outro deus a não ser o seu, essa recusa, considerada como uma rebelião contra o vencedor, lhes atraiu as perseguições que se lê na história deles e do que não se vê nenhum outro exemplo antes do cristianismo.
Os romanos, antes de tomar um lugar, intimavam os deuses a abandoná-lo e quando deixaram os deuses dos tarentinos irritado, o fizeram por considerarem esses deuses submetidos aos seus e forçados a lhes prestar homenagem: deixavam aos vencidos seus deuses como lhes deixavam suas leis.
Foi nessas circunstâncias que Jesus veio estabelecer sobre a Terra um reino espiritual, o que separando o sistema teológico do sistema político fez o Estado cessar de ser uno e ocasionou as divisões intestinas que jamais deixaram de agitar os povos cristãos. Ora, não tendo podido essa ideia nova de um reino do outro mundo jamais entrar na cabeça dos pagãos, estes sempre encararam os cristãos como verdadeiros rebeldes que, sob uma hipócrita submissão, só aguardavam o momento oportuno de se tornarem independentes e senhores, usurpando, assim, mediante a habilidade, a autoridade que simulavam respeitar em sua fraqueza. Tal foi a causa das perseguições.
O que os pagãos haviam recado aconteceu e tudo mudou de aspecto. Os humildes cristãos mudaram de linguagem e logo se viu esse pretenso reino do outro mundo tornar-se neste sob um chefe visível o mais violento despotismo.
Resultou desse duplo poder um perpétuo conflito de jurisdição, que impossibilitou toda boa constituição nos Estados cristãos e jamais se logrou saber se era ao senhor ou ao padre que se estava obrigado a acatar.
O espírito do cristianismo dominou. O culto sagrado sempre permaneceu ou tornou-se independente do Soberano e sem conexão necessária com o corpo do Estado. Maomé teve excelentes ideias, uniu corretamente o seu sistema político e enquanto subsistiu a forma do seu governo entre os califas, seus sucessores, esse governo foi precisamente uno, e por isso mesmo, bom. Porém, os árabes, tornando-se florescentes, letrados, refinados, fracos e pusilânimes, foram subjugados pelos bárbaros; então a divisão entre os dois poderes recomeçou.

Entre nós, os reis da Inglaterra converteram-se em chefes da Igreja, o mesmo fazendo os czares; mas mediante esse título, porém, tornaram-se menos senhores do que ministros; granjearam menos o direito de modificá-la do que o poder de conservá-la; não são nela legisladores, são apenas Príncipes. Em toda parte que o clero constitui um corpo ele é senhor e legislador na sua alçada. Há portanto, dois poderes, dois soberanos na Inglaterra, na Rússia, da mesma forma que alhures.

De todos os autores cristãos, o filósofo Hobbes é o único que percebeu muito bem o mal e o seu remédio, que ousou propor a união das duas cabeças da águia e reconduzir tudo à unidade política, sem a qual jamais Estado ou governo serão bem constituídos.

A religião considerada na sua relação com a sociedade, que é geral ou particular, pode igualmente ser dividida em duas espécies, a saber, a religião do homem e a religião do cidadão. A primeira é genuína e simples religião do Evangelho, o que se pode chamar de  A outra possui seus dogmas, seus ritos, seu culto exterior prescrito por leis; fora da única nação que a professa, tudo é para ela infiel, estrangeiro, bárbaro; ela só estende os deveres e os direitos do homem até onde se encontram seus altares, e se pode designar direito divino civil ou positivo.
A segunda é boa porque une o culto divino ao amor às leis e porque az da pátria o objeto da adoração dos cidadãos, ensina-lhes que servir ao Estado é servir ao deus tutelar. Morrer por seu país é alcançar o martírio, transgredir as leis é ser ímpio e submeter um culpado à execração pública é devotá-lo à ira dos deuses.
Mas ela é má pelo fato de ter sido fundada no erro e na mentira, engana os homens, os torna crédulos, supersticiosos, submergindo o verdadeiro culto da divindade em vão cerimonial. Ainda é má quando, fazendo-se exclusiva e tirânica, torna um povo sanguinário e intolerante, de sorte que esse se limita a respirar assassínio e massacre e crê realizar uma ação santa matando quem quer que não reconheça os seus deuses. Isso põe um povo num estado natural de guerra contra todos os outros, o que é muito nocivo à sua própria segurança.
Resta, portanto, a religião do homem ou o cristianismo, não este da atualidade, mas aquele do Evangelho que é totalmente diferente, pois nessa religião santa, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, se reconhecem todos como irmãos e a sociedade que os une não se dissolve nem por ocasião da morte.
Longe de unir os corações ao Estado, ela os desliga de todas as coisas da Terra: não conheço nada mais contrário ao espírito social.

Dizem que um povo de verdadeiros cristãos formaria a mais perfeita das sociedades imaginável. Uma sociedade de verdadeiros cristãos não seria mais uma sociedade humana. À força de ser perfeita lhe faltaria coesão; seu vício aniquilador residiria na sua própria perfeição.  Cada um cumpriria o seu dever; o povo estaria submetido às leis, os chefes seriam justos e moderados, os magistrados íntegros, incorruptíveis, os soldados desdenhariam a morte, não haveria vaidade nem luxo. O cristianismo é uma religião inteiramente espiritual, ocupada unicamente das coisas do céu. A pátria do cristão não pertence a esse mundo.
Para que a sociedade fosse pacífica e se mantivesse a harmonia seria necessário que todos os cidadãos sem exceção fossem igualmente bons cristãos. A caridade cristã não permite facilmente que se pense mal do próximo. O essencial é atingir o paraíso e a resignação é um meio para isso. Sobrevém uma guerra? Eles cumprem seu dever, mas sem paixão pela vitória; mais sabem morrer do que vencer.
O cristianismo só prega servidão e dependência. Seu espírito é demasiado favorável à tirania para que esta não tire proveito disso sempre. Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos; sabem-no e não se comovem com isso; essa vida efêmera tem pouco preço aos seus olhos.
Os súditos só devem ao Soberano a satisfação de suas opiniões na medida que essas opiniões interessem à comunidade.

Os dogmas da religião civil devem ser simples, em número modesto, enunciados com precisão e sem explicações e comentários. A existência da divindade poderosa, inteligente, benéfica, previdente e provedora, a vida vindoura, a felicidade dos justos, a punição dos maus, a santidade do contrato social e das leis – eis os dogmas positivos. Quantos aos dogmas negativos, restrinjo-os a um só: a intolerância, que se enquadra nos cultos que excluímos.

Atualmente, quando não há mais e quando não pode mais haver religião nacional exclusiva, deve-se tolerar todas aquelas que toleram as outras, contanto que seus dogmas não contrariem em nada os deveres do cidadão.

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