O CONTRATO SOCIAL – PRINCIPIOS DO DIREITO POLÍTICO – Jean
Jacques Rousseau
O subtítulo é muito mais significativo e expressivo.
O ser humano nasce livre e em toda parte está a ferros.
Se um povo é constrangido a obedecer e obedece, faz bem.
A ordem social é um direito sagrado que serve de base para
todos os demais. Esse direito está fundado em convenções.
A mais antiga de todas as sociedades e a única que é natural
é a família.
O mais forte jamais é bastante forte para ser sempre o
senhor se não transformar sua força em direito e a obediência em dever. Assim é
constituído o direito do mais forte.
A força é um poder físico; não vejo de modo algum, que
moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força é um ato de
necessidade, não de vontade; é no máximo, um ato de prudência.
Visto que se é a força que produz o direito, o efeito muda
com a causa; toda força que sobrepuje a primeira, a sucederá nesse direito.
Visto que nenhum homem tem qualquer autoridade natural sobre
seu semelhante e visto que a força não produz direito algum, restam, então, as
convenções como base para toda a autoridade legítima entre os seres humano.
Ora, um homem que se faz escravo de outro não se dá: ele se
vende – ao menos por sua subsistência.
A guerra é uma relação entre Estados na qual os indivíduos
particulares são inimigos apenas acidentalmente.
Entre coisas de natureza diversa não se pode estabelecer
qualquer relação verdadeira.
O estrangeiro, que rouba, mata ou detém os súditos sem
declarar a guerra ao príncipe, não é um inimigo – é um bandido.
Sendo a finalidade da guerra a destruição do Estado inimigo,
tem-se o direito de matar seus defensores contanto que empunhem armas, mas no
momento em que eles as depõem e se rendem, cessando de ser inimigos ou
instrumentos do inimigo, eles voltam a ser simplesmente homens e não se tem
mais direito sobre sua vida.
Assim, em qualquer sentido que encaremos as coisas, o
direito de escravidão é nulo, não apenas porque é ilegítimo, mas também porque
é absurdo e carece de significado. Estas palavras, escravidão e direito são contraditórias,
excluem-se mutuamente.
Antes de examinar o ato mediante o qual um povo elege um
rei, seria bom examinar o ato mediante o qual um povo é um povo, pois sendo
este ato necessariamente anterior ao outro, constitui um verdadeiro fundamento
da sociedade.
De ato, se não houve uma convenção anterior, a menos que a
eleição se revelasse unânime, onde estaria a obrigação dos menos numerosos se
submeterem à escolha dos mais numerosos?
Ora, como seres humanos não podem engendrar novas formas,
mas somente combinar e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio para se
conservarem senão formar, mediante agregação, uma soma de forças que possa
vencer a resistência, impulsionando-as para um só móvel e fazendo-as atuar em
conjunto.
Como envolvê-los sem se prejudicar e sem negligenciar os
cuidados que ele deve a si mesmo?
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de
toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um se
unindo a todos obedeça, todavia, apenas a si mesmo e permaneça tão livre como
antes. Eis o problema fundamental para o qual o contrato social oferece a
solução.
Sendo o pacto social violado, cada um retornaria aos seus
primeiros direitos e retomaria sua liberdade natural, perdendo a liberdade
convencional pela qual renunciara a favor daquela.
Bem compreendidas, essas cláusulas se reduzem todas a uma
só, a saber: a alienação total de cada associado com todos seus direitos a toda
comunidade, pois primeiramente, cada um se dando por inteiro.
Ademais, a alienação sendo realizada sem reservas, a união é
a mais próxima possível da perfeição e nenhum associado terá mais nada a
reclamar;
Cada um sendo, de certa maneira, seu próprio juiz,
pretenderia de imediato sê-lo de todos, o estado de natureza subsistiria e a
associação se tornaria necessariamente tirânica ou vã.
Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob
a suprema direção da vontade geral;
Esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo.
Essa pessoa pública assim formada pela união de todas as
outras era designada outrora pelo nome de cidade (sentido verdadeiro).
O ato de associação encerra um compromisso recíproco do
público com os particulares.
Mas não se pode aplicar aqui a máxima do direito civil de
que ninguém está obrigado aos compromissos assumidos consigo mesmo, visto haver
grande diferença entre se obrigar em relação a si mesmo ou em relação a um todo
de que se faz parte.
Logo que essa multidão é reunida num corpo, não se pode
ofender um dos membros sem atacar o corpo;
Cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular
contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão.
Essa passagem do estado de natureza ao estado civil produz
no homem uma mudança muito acentuada, substituindo na sua conduta o instinto
pela justiça e outorgando às suas ações a moralidade que lhe faltava antes.
O homem, o qual até então olhara apenas para si mesmo, se vê
forçado a agir com base em outros princípios e a consultar sua razão antes de
escutar suas inclinações. Embora se prive de várias vantagens que frui da
natureza, granjeia outras de igual importância; ...deveria bendizer o instante
que dela o arrancou para sempre e de que, de um animal estúpido e limitado, fez
um ser inteligente e um homem.
Reduzamos a termos fáceis de comparação. O que o homem perde
pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que
o tenta e que pode atingir; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade
detudo o que possui.
O direito do primeiro ocupante, se bem que mais real que o
do mais forte, só se torna um direito verdadeiro após o estabelecimento do
direito de propriedade. Todo homm tem naturalmente direito a tudo aquilo que
lhe é necessário, mas o ato positivo que o torna proprietário de qualquer bem o
exclui de todo o resto. Definida sua parte, ele a ela deve se limitar e não tem
mais nenhum direito ao que é comum.
Será suficiente por um pé sobre um terreno comum para tão
logo se pretender seu dono?
Como pode um homem ou um povo apoderar-se de um território
imenso e dele privar todo o gênero humano senão por uma usurpação condenável,
já que tira do resto dos homens o abrigo e os alimentos que a natureza lhes dá
em comum?
Pode ocorrer também que os homens principiem a se unir antes
de possuir algo e que, apoderando-se em seguida de um terreno suficiente para
todos, usufruam dele em comum, ou que o dividam entre si...
Em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto
fundamental substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a
desigualdade física que a natureza poderia ter colocado entre os homens e que,
podendo ser desiguais em força e gênio, se tornam iguais pela convenção e pelo
direito.
Pois se a oposição dos interesses particulares tornou
necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos
interesses que o tornou possível.
Se não houvesse qualquer ponto em que todos os interesses
concordassem, não poderia existir nenhuma sociedade. Ora, é unicamente baseado
nesse interesse comum que a sociedade deve ser governada.
Sendo a soberania o exercício da vontade geral e o Soberano
um ser coletivo, que só pode ser representado por ele mesmo; pode-se muito bem
transmitir o poder, mas não a vontade.
Se não é impossível que uma vontade particular se harmonize
em algum ponto com a vontade geral, é impossível, ao menos, que esse acordo
seja durável e constante, visto que a vontade particular se inclina, por sua
natureza, para as preferências, e a vontade geral para a igualdade.
Pois a vontade é geral ou ela não o é; ou é aquela do corpo
do povo, ou somente de uma parte. No primeiro caso essa vontade declarada e um
ato de soberania e produz lei. No segundo não passa de uma vontade particular
ou um ato de magistratura; no máximo, é um decreto.
Conclui-se que a vontade geral é sempre correta e tende
sempre à utilidade pública, mas não se conclui que as deliberações do povo
gozem sempre da mesma correção. Deseja-se sempre o seu próprio bem, mas não é
sempre que se percebe onde ele se acha.
Há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade
geral; esta só considera o interesse comum, aquela considera o interesse
privado e não passa de uma soma de vontades particulares.
Quando o povo suficientemente informado delibera, a vontade
geral resultaria sempre do grande número de pequenas diferenças e a deliberação
seria sempre boa. Mas quando ocorrem intrigas, associações parciais às expensas
da grande, a vontade de cada uma dessas associações se torna geral
relativamente a seus membros e particular em relação ao Estado;
Importa, portanto, para que se alcance o devido enunciado da
vontade geral que não haja sociedade parcial dentro do Estado e que cada
cidadão opine apenas de acordo consigo memo.
Se o Estado ou a Cidade é tão só uma pessoa moral cuja vida
consiste na união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o
de sua própria conservação, faz-lhe necessária uma força universal e
compulsória para mover e dispor cada parte da maneira mais conveniente ao todo.
Todos os serviços que um cidadão pode prestar ao Estado, ele
os deve tão logo o Soberano os solicite; mas o Soberano, por seu lado, não pode
sobrecarregar os súditos com um peso inútil à comunidade; não pode sequer
desejá-lo pois sob a lei da razão nada se produz sem causa, tampouco sob a lei
da natureza.
Os compromissos que nos ligam ao corpo social só são
obrigatórios na medida em que são mútuos.
... deve partir de todos para se aplicar a todos e perde sua
retidão natural quando tende para algum objeto individual e determinado;
Seria ridículo querer então se reportar a uma decisão
expressa da vontade geral que só poderia ser a conclusão de uma das partes (uma
vontade estranha, particular).
Quem deseja conservar sua vida às expensas dos outros deve também doar a eles a vida quando necessário.
Pelo pacto social demos existência e vida ao corpo político:
trata-se agora de lhe dar movimento e vontade mediante a legislação, já que o
ato primitivo pelo meio do qual esse corpo se forma e se une, nada determina
quanto àquilo que ele deverá realizar para se conservar.
O que está bem e em conformidade com a ordem assim é devido
à natureza das coisas e independentemente das convenções humanas.
Há, indubitavelmente, uma justiça universal emanada exclusivamente da razão, mas essa justiça, para ser admitida entre nós, deve ser recíproca.
No estado de natureza, no qual tudo é comum, nada devo àqueles a quem nada prometi; apenas reconheço como pertencente a outrem aquilo que é inútil para mim. Não é assim no estado civil, no qual todos os direitos são fixados pela lei.
Forma-se entre o todo e sua parte uma relação que deles faz
dois seres separados, na qual a parte é um e o todo menos essa mesma parte é o
outro.
Assim, a lei poderá muito bem estatuir que haverá privilégios, porém não poderá conferi-los nominalmente a ninguém;... não poderá nomear tais e tais indivíduos.
O povo submetido às leis deverá ser seu autor.
Como uma multidão cega que com frequência não sabe o que
quer, pois raramente está ciente do que é bom para si, executaria ela própria
um empreendimento tão grande, tão difícil como um sistema legislativo? O povo,
de sua parte, nem sempre tem dele percepção. A vontade geral é sempre correta,
porém o julgamento que a guia não é sempre esclarecido.
Para descobrir as melhores regras de sociedade que convém às
nações seria necessária uma inteligência superior, que visse todas as paixões
humanas e não experimentasse nenhuma delas.
Seriam necessários deuses para dar leis aos homens.
Quando Licurgo deu leis à sua pátria, começou por abdicar à
realeza. Era costume da maioria das cidades gregas confiar a estrangeiros o
estabelecimento de suas leis.
Os próprios decênviros (Cada um dos
dez magistrados da antiga Roma, encarregados de codificar as leis) jamais se
arvoraram o direito de azer passar alguma lei contando apenas com sua
autoridade. Nada do que propomos, diziam eles ao povo, pode se converter em lei
sem o vosso consentimento. Romanos, sede vós mesmos os autores das leis que
devem fazer vossa felicidade.
Os sábio que desejassem se dirigir ao vulgo com a linguagem
deles em lugar daquela do vulgo não seriam compreendidos. Ora, há mil espécies
de ideias impossíveis de serem traduzidas para a língua do povo.
Cada indivíduo, apreciando tão só o plano de governo que se
relaciona com seu interesse particular, dificilmente percebe as vantagens que deve
extrair das privações continuas impostas pelas boas leis.
Não podendo o legislador empregar nem a força nem o
raciocínio, impõe-se como necessidade que ele recorra a uma autoridade de outra
ordem, a qual possa induzir sem violência e persuadir sem convencer.
...Em todas as épocas os pais das nações foram constrangidos
a recorrer à intervenção do céu e honrar os deuses..., a fim de que os povos
obedecessem livremente e suportassem docilmente o jugo da felicidade pública.
Não cabe a qualquer homem fazer falar os deuses ou se fazer
acreditar quando anuncia ser deles o intérprete.
Não é necessário que política e religião tenham entre nós um
objeto comum, mas na origem das nações uma serve de instrumento à outra.
O sábio legislador não principia redigindo boas leis em si
mesmas, mas investiga antes se o povo ao qual as destina está apto a
assimilá-las.
Os povos, bem como os homens, apenas são dóceis enquanto são
jovens, tornando-se incorrigíveis ao envelhecerem;
O povo não consegue
sequer suportar que se ataque seus males para destruí-los, semelhante a
esses enfermos estúpidos e sem coragem que tremem ante a aproximação do médico.
Há para as nações como para os homens um tempo de maturidade
que é preciso aguardar antes de submetê-los às leis;
...impediu seus súditos de jamais se tornarem o que poderiam
ser ao persuadi-los de que não eram o que não são. É assim que um preceptor
francês forma seu discípulo para que brilhe por um momento em sua infância e
depois jamais ser coisa alguma.
Um estado deve... ter limites para a extensão que pode ter, a
fim de que não seja nem excessivamente grande para ser bem governado, nem
excessivamente pequeno para ser autossuficiente.
Distância – um peso se torna mais pesado à extremidade de uma
alavanca mais longa.
São os homens que fazem o Estado e é a terra que alimenta os
homens, sendo, então, a relação ser a terra suficiente à manutenção de seus
habitantes e haver tantos habitantes quanto a terra possa nutrir.
Desconheço a arte de ser claro para quem não deseja estar
atento.
Toda ação livre possui duas causas: uma moral, a saber, a vontade que determina o ato e a outra física, a saber, o poder que a executa. Quando um caminho rumo a um objeto, é preciso,
primeiramente, que eu queira ir até ele e, em segundo lugar, que meus pés me
levem até ele.
O que é, então, o governo? Um corpo intermediário estabelecido entre os
súditos e o Soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução
das leis e da manutenção da liberdade tanto civil quanto política. Os membros
desse corpo são denominados magistrados ou reis, isto é, governantes e o corpo
inteiro leva o nome de príncipe.
Ora, quanto menos as vontades particulares se relacionam com
a vontade geral, isto é, os costumes às leis, mais deve aumentar a força de
repressão, do que se segue que o governo, para ser bom, deve ser relativamente
mais forte à medida que o povo é mais numeroso.
Dentro de uma legislação perfeita, a vontade particular ou
individual deve ser nula, a vontade do corpo própria ao governo, muito
subordinada e, consequentemente, a vontade geral ou soberana sempre dominante e
a regra única de todas as outras.
O Soberano pode, em primeiro lugar, confiar o governo a todo
povo ou à maior parte do povo, de maneira que haja mais cidadãos-magistrados que
simples cidadãos particulares. DEMOCRACIA
Pode confinar o governo entre as mãos de um pequeno número.
ARISTOCRACIA
Pode concentrar todo o governo nas mãos e um único
magistrado. MONARQUIA
Não é bom que aquele que produz as leis as ponha em exceção,
nem que o corpo do povo desvie sua atenção dos pontos de vista gerais para
fixa-la em objetivos particulares.
O crédito do Estado é bem mais consolidado no estrangeiro
mediante senadores veneráveis do que por uma multidão desconhecida ou
desprezada.
Maquiavel simulando dar lições aos reis, ele as deu, grandes,
aos povos. O Príncipe é o livro dos republicanos.
Quanto mais a administração pública é numerosa, mais a
relação do Príncipe com os súditos diminui e se aproxima da igualdade, de sorte
que essa relação ou é uma, ou é a própria igualdade da democracia.
É mais fácil conquistar do que reger.
Em todos os governos do mundo a pessoa pública consome e nada
produz. De onde lhe vem, então, a substância consumida? Do labor de seus
membros. É o supérfluo dos particulares que produz o necessário do público. Do
que se conclui que o estado civil só pode subsistir na medida e que o trabalho
dos homens renda além de suas necessidades.
Qualquer pouco dado pelo povo que não lhes volta às mãos de
modo algum, dando o povo sempre, o levará ao esgotamento;
Naqueles em que o único fito de se vestir é o adorno busca-se
mais brilho do que utilidade.
Se quisermos formar uma instituição duradoura, não sonhemos,
em absoluto, portanto em torná-la eterna.
O corpo político, assim como o corpo humano, já começa a
morrer ao nascer e traz em si mesmo as causas de sua destruição.
O princípio da vida política reside na autoridade soberana. O
poder legislativo é o coração do Estado, o poder executivo, seu cérebro, o qual
transmite movimento a todas as partes.
Longe de enfraquecerem as leis adquirem incessantemente uma
força nova em todo Estado bem constituído;
Em todos os lugares em que as leis enfraquecem ao
envelhecerem, isso prova que não há mais poder legislativo e que o Estado não
vive mais.
Quanto mais bem constituído for o Estado, mais os negócios
públicos sobrepujarão os privados no espírito dos cidadãos.
Numa cidade (polis) bem conduzida todos correm às
assembleias; sob um mal governo ninguém deseja dar um passo para dirigir-se a
elas porque ninguém se interessa pelo que nelas acontece, prevendo-se que lá a
vontade gral não prevalecerá e, porque, enfim, os afazeres domésticos tudo
absorvem.
No momento em que alguém disser dos assuntos do Estado Que me importa? pode-se ter como certo que o Estado está perdido.
Sendo todos os cidadãos iguais através do contrato social, o
que todos devem fazer, todos o podem prescrever, enquanto ninguém tem o direito
de exigir que outrem faça aquilo que ele mesmo não faz.
As assembleias periódicas são apropriadas principalmente
quando não necessitam convocação formal, pois nesse caso o Príncipe não poderia
impedi-las sem se declarar abertamente transgressor das leis e inimigo do
Estado.
A paz, a união, a igualdade são inimigas das sutilezas
políticas. Os homens corretos e simples são difíceis de ludibriar devido à sua
simplicidade, não os impressionando as astúcias, os pretextos refinados; não
são sequer suficientemente perspicazes para serem tolos.
Quanto mais reinar o consenso nas assembleias, isto é, isto
é, quanto mais se aproximarem os pareceres da unanimidade, mais a vontade geral
será dominante. Entretanto, os longos debates, as dissenções, o tumulto
anunciam a ascendência dos interesses particulares e o declínio do Estado.
A diferença de um único voto rompe a igualdade, um único
voto opositor rompe a unanimidade. Mas entre a unanimidade e a igualdade há
diversas parcelas desiguais, podendo-se para cada uma delas fixar esse número
de acordo com estado e as necessidades do corpo politico.
Que me indaguem: porque no paganismo, no qual cada Estado
possuía seu culto e seus deuses, não havia absolutamente guerras religiosas?
Respondo que era por isso mesmo, ou seja, cada Estado tendo seu culto próprio
tanto quanto seu governo, não distinguia seus deuses de suas leis. A guerra
política era também teológica. A jurisdição dos deuses era, por assim dizer,
fixada pelos limites das nações. O deus de um povo não detinha qualquer direito
sobre os outros povos. Os deuses dos pagãos não eram deuses ciumentos;
repartiam entre si o império do mundo.
Mas quando os judeus, submetidos ao rei da Babilônia e em
seguida aos reis da Síria, quiseram se obstinar a não reconhecer nenhum outro
deus a não ser o seu, essa recusa, considerada como uma rebelião contra o
vencedor, lhes atraiu as perseguições que se lê na história deles e do que não
se vê nenhum outro exemplo antes do cristianismo.
Os romanos, antes de tomar um lugar, intimavam os deuses a
abandoná-lo e quando deixaram os deuses dos tarentinos irritado, o fizeram por
considerarem esses deuses submetidos aos seus e forçados a lhes prestar
homenagem: deixavam aos vencidos seus deuses como lhes deixavam suas leis.
Foi nessas circunstâncias que Jesus veio estabelecer sobre a
Terra um reino espiritual, o que separando o sistema teológico do sistema
político fez o Estado cessar de ser uno e ocasionou as divisões intestinas que
jamais deixaram de agitar os povos cristãos. Ora, não tendo podido essa ideia
nova de um reino do outro mundo jamais entrar na cabeça dos pagãos, estes
sempre encararam os cristãos como verdadeiros rebeldes que, sob uma hipócrita
submissão, só aguardavam o momento oportuno de se tornarem independentes e
senhores, usurpando, assim, mediante a habilidade, a autoridade que simulavam
respeitar em sua fraqueza. Tal foi a causa das perseguições.
O que os pagãos haviam recado aconteceu e tudo mudou de
aspecto. Os humildes cristãos mudaram de linguagem e logo se viu esse pretenso
reino do outro mundo tornar-se neste sob um chefe visível o mais violento
despotismo.
Resultou desse duplo poder um perpétuo conflito de
jurisdição, que impossibilitou toda boa constituição nos Estados cristãos e
jamais se logrou saber se era ao senhor ou ao padre que se estava obrigado a
acatar.
O espírito do cristianismo dominou. O culto sagrado sempre
permaneceu ou tornou-se independente do Soberano e sem conexão necessária com o
corpo do Estado. Maomé teve excelentes ideias, uniu corretamente o seu sistema
político e enquanto subsistiu a forma do seu governo entre os califas, seus
sucessores, esse governo foi precisamente uno, e por isso mesmo, bom. Porém, os
árabes, tornando-se florescentes, letrados, refinados, fracos e pusilânimes,
foram subjugados pelos bárbaros; então a divisão entre os dois poderes
recomeçou.
Entre nós, os reis da Inglaterra converteram-se em chefes da
Igreja, o mesmo fazendo os czares; mas mediante esse título, porém, tornaram-se
menos senhores do que ministros; granjearam menos o direito de modificá-la do
que o poder de conservá-la; não são nela legisladores, são apenas Príncipes. Em
toda parte que o clero constitui um corpo ele é senhor e legislador na sua
alçada. Há portanto, dois poderes, dois soberanos na Inglaterra, na Rússia, da
mesma forma que alhures.
De todos os autores cristãos, o filósofo Hobbes é o único
que percebeu muito bem o mal e o seu remédio, que ousou propor a união das duas
cabeças da águia e reconduzir tudo à unidade política, sem a qual jamais Estado
ou governo serão bem constituídos.
A religião considerada na sua relação com a sociedade, que é
geral ou particular, pode igualmente ser dividida em duas espécies, a saber, a
religião do homem e a religião do cidadão. A primeira é genuína e simples
religião do Evangelho, o que se pode chamar de A outra possui seus dogmas,
seus ritos, seu culto exterior prescrito por leis; fora da única nação que a
professa, tudo é para ela infiel, estrangeiro, bárbaro; ela só estende os
deveres e os direitos do homem até onde se encontram seus altares, e se pode
designar direito divino civil ou positivo.
A segunda é boa porque une o culto divino ao amor às leis e
porque az da pátria o objeto da adoração dos cidadãos, ensina-lhes que servir
ao Estado é servir ao deus tutelar. Morrer por seu país é alcançar o martírio,
transgredir as leis é ser ímpio e submeter um culpado à execração pública é
devotá-lo à ira dos deuses.
Mas ela é má pelo fato de ter sido fundada no erro e na
mentira, engana os homens, os torna crédulos, supersticiosos, submergindo o
verdadeiro culto da divindade em vão cerimonial. Ainda é má quando, fazendo-se
exclusiva e tirânica, torna um povo sanguinário e intolerante, de sorte que
esse se limita a respirar assassínio e massacre e crê realizar uma ação santa
matando quem quer que não reconheça os seus deuses. Isso põe um povo num estado
natural de guerra contra todos os outros, o que é muito nocivo à sua própria
segurança.
Resta, portanto, a religião do homem ou o cristianismo, não
este da atualidade, mas aquele do Evangelho que é totalmente diferente, pois
nessa religião santa, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, se
reconhecem todos como irmãos e a sociedade que os une não se dissolve nem por
ocasião da morte.
Longe de unir os corações ao Estado, ela os desliga de todas
as coisas da Terra: não conheço nada mais contrário ao espírito social.
Dizem que um povo de verdadeiros cristãos formaria a mais
perfeita das sociedades imaginável. Uma sociedade de verdadeiros cristãos não
seria mais uma sociedade humana. À força de ser perfeita lhe faltaria coesão;
seu vício aniquilador residiria na sua própria perfeição. Cada um cumpriria o seu dever; o povo estaria
submetido às leis, os chefes seriam justos e moderados, os magistrados
íntegros, incorruptíveis, os soldados desdenhariam a morte, não haveria vaidade
nem luxo. O cristianismo é uma religião inteiramente espiritual, ocupada
unicamente das coisas do céu. A pátria do cristão não pertence a esse mundo.
Para que a sociedade fosse pacífica e se mantivesse a
harmonia seria necessário que todos os cidadãos sem exceção fossem igualmente
bons cristãos. A caridade cristã não permite facilmente que se pense mal do
próximo. O essencial é atingir o paraíso e a resignação é um meio para isso.
Sobrevém uma guerra? Eles cumprem seu dever, mas sem paixão pela vitória; mais
sabem morrer do que vencer.
O cristianismo só prega servidão e dependência. Seu espírito
é demasiado favorável à tirania para que esta não tire proveito disso sempre.
Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos; sabem-no e não se
comovem com isso; essa vida efêmera tem pouco preço aos seus olhos.
Os súditos só devem ao Soberano a satisfação de suas
opiniões na medida que essas opiniões interessem à comunidade.
Os dogmas da religião civil devem ser simples, em número
modesto, enunciados com precisão e sem explicações e comentários. A existência
da divindade poderosa, inteligente, benéfica, previdente e provedora, a vida
vindoura, a felicidade dos justos, a punição dos maus, a santidade do contrato
social e das leis – eis os dogmas positivos. Quantos aos dogmas negativos,
restrinjo-os a um só: a intolerância, que se enquadra nos cultos que excluímos.
Atualmente, quando não há mais e quando não pode mais haver
religião nacional exclusiva, deve-se tolerar todas aquelas que toleram as
outras, contanto que seus dogmas não contrariem em nada os deveres do cidadão.
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